Nesta entrevista, Sérgio Abranches fala sobre a crise da democracia representativa, sobre a relação entre a corrupção e o presidencialismo de coalizão e sobre a maneira como os presidentes eleitos desde a redemocratização lidaram com as peculiaridades desse modelo.
Você começa seu livro afirmando que a democracia vai mal em todo o mundo e que a crise da representação é global. A democracia representativa pode estar vivendo o seu ocaso? Existem alternativas?
SÉRGIO ABRANCHES: A democracia representativa, como todas as estruturas políticas e sociais, está em transição. A transição estrutural é universal, global e alcança todos os setores da vida humana. Como a mudança social é mais rápida que a mudança política, estamos no momento em que os sistemas de representação representam contingente cada vez menor da sociedade. As forças emergentes se sentem sem representação. Os que perdem na transição também se sentem prejudicados pela política e reagem contra o sistema. O que teremos no futuro, não sabemos. Certamente a democracia em si não desaparecerá, ela se transformará. Não sabemos sequer se teremos partidos políticos, no futuro, como os temos hoje. É inevitável, grandes transições se manifestam primeiro como crise, até que os novos modos amadureçam e comecem a oferecer soluções novas.
O que há de original no nosso presidencialismo? E que fatores fizeram com que o desenvolvimento histórico do presidencialismo no Brasil fosse diferente do de outras democracias que adotam esse sistema?
ABRANCHES: Nosso presidencialismo combina uma série de fatores que lhe conferem uma certa dose de singularidade. É multipartidário, federativo — uma federação ampla e com elevada heterogeneidade, social, econômica e política — proporcional, lista aberta, bicameral. O sistema partidário é fragmentado e muito diferenciado no plano estadual. Tem um presidente forte e um Congresso forte. Uma Constituição minuciosa. O sistema partidário nacional, que elege o presidente, não coincide com o sistema partidário nos estados, que elegem deputados e senadores.
Esse modelo nasceu da organização social e política do país, ao longo de sua história republicana. Há fragmentos dele na Primeira República (1889-1930). A Constituição de 1946 estabeleceu esse modelo na sua versão original. e ele persistiu por toda a Segunda República (1946-1964). E foi adotado, com importantes mudanças que criaram instituições muito mais resilientes. Ele nasce de nossa tradição imperial, patrimonialista e patriarcal. Reflete nossa heterogeneidade que desemboca no multipartidarismo fragmentado. Há 30 anos, o Brasil era o único caso relevante de presidencialismo de coalizão. Mais recentemente, o modelo foi adotado por várias democracias nascentes. Mas, no Brasil, nenhum presidente consegue ter a maioria com seu partido no Congresso, e a coalizão não é esporádica, é permanente e forçosa, para garantir governança e governabilidade.
A população brasileira parece rejeitar cada vez mais as alianças baseadas em toma-lá-dá-cá, clientelismo e corrupção que, a experiência sugere, parecem inevitáveis no modelo atual. Em que medida isso leva ao perigo de buscar soluções populistas radicais, à esquerda ou à direita?
ABRANCHES: O perigo do populismo nasce do desconforto, da insegurança e das incertezas da transição. Ele aumentou em todas as democracias do mundo. As manifestações locais dessa reação à mudança muito rápida e abrangente é que variam e determinam que tipo de populismo tem mais apelo. O toma-lá-dá-cá, o clientelismo e a corrupção não são uma decorrência inevitável do modelo político. O problema não é o presidencialismo, nem a coalizão. É o comportamento das elites políticas e o modo pelo qual formam coalizões. Há incentivos para essas práticas embutidos no modelo; alguns, como o fundo partidário — que financia legendas de aluguel — decorrem das regras definidas para o modelo.
Mas estou convencido de que o incentivo mais poderoso está na estrutura orçamentária, fiscal e tributária. A concentração excessiva de recursos tributários e fiscais na União, inclusive para financiar áreas que são atribuições constitucionais de estados e municípios, e a discricionariedade com que o presidente pode administrar os recursos orçamentários e extra-orçamentários, transforma governadores e prefeitos em pedintes, demandando recursos da União. Os parlamentares federais passam a ser, principalmente, agentes intermediários entre a União e suas bases, na busca desses recursos. Se tudo se resume a dinheiro federal e cargos que têm poder de gasto, perde-se a noção de prioridade e estratégia, os programas de partidos e de governo desaparecem. Tudo passa a ser ad hoc, caso a caso e instala-se o toma-lá-dá-cá. Se não redesenharmos o federativo e o sistema tributário e fiscal, não desativaremos essa estrutura de incentivos ao clientelismo só com reformas eleitorais.
O que a breve experiência parlamentarista no começo dos anos 60 pode trazer de lição?
ABRANCHES: A experiência semipresidencialista dos anos 1960 mostrou três coisas: A primeira é a enorme dificuldade, dada nossa tradição monárquica e presidencialista, para separar de forma adequada os poderes do presidente, Chefe de Estado, e do primeiro-ministro, Chefe de Governo. A segunda, é que persistiu sendo um governo de coalizão. A terceira, que a chave do sucesso do primeiro-ministro está ligada a se seu partido é o pivô da coalizão e tem relações de afinidade com os demais partidos da coalizão. E isso tem se mostrado verdadeiro também no presidencialismo de coalizão.
Você acredita em um retorno ao parlamentarismo?
ABRANCHES: Acho muito difícil implantar o parlamentarismo no Brasil, com a federação extensa que temos. Como fazer nos estados? Implantar o parlamentarismo também neles? Complicado. Mantê-los “presidencialistas”. Complicado também. Os governadores passariam a ter muito poder na coalizão. Poderiam, mesmo, ter a chave-mestra da maioria parlamentar. O mandato do primeiro-ministro ficaria muito dependente do apoio dos governadores com as maiores bancadas. Poderíamos voltar a uma espécie de política de governadores. Ao modelo da Primeira República.
Em que medida a Constituinte de 1988 foi responsável pela versão do Presidencialismo de coalizão que prevalece hoje?
ABRANCHES: O presidencialismo de coalizão que temos hoje, sua versão 2.0, é fruto do compromisso que se estabeleceu na Constituinte. Os parlamentaristas terminaram por não conseguir implantar o modelo que defendiam. Como uma parcela expressiva dos Constituintes havia vivido o colapso do modelo da Segunda República, com o golpe militar, trataram de criar instituições muito mais robustas. Criar defesas à interferência militar na política e a golpes contra a ordem constitucional. Por isso essa versão é muito mais resiliente, institucionalmente, do que a versão original da Segunda República. Este modelo é muito mais capaz de lidar com as crises que ele mesmo gera, a partir da dissolução da coalizão governista.
Qual é a relação entre a corrupção e o presidencialismo de coalizão?
ABRANCHES: A corrupção nasce de incentivos que não são necessários ao presidencialismo de coalizão. Representam uma deformação autoritária e tecnocrática da república federativa. Esses incentivos decorrem do nosso modelo fiscal hiperconcentrado e discricionário, sem orçamento impositivo e sem autonomia financeira de estados e municípios, associado ao instituto monárquico, antirepublicano, do privilégio de foro e à excessiva amplitude do alcance de recursos a decisões judiciais, que alimenta a impunidade pela morosidade dos processos. Ao mesmo tempo, para dar resiliência à versão 2.0 do presidencialismo de coalizão, os Constituintes deram mais independência e robustez ao Judiciário, ao Ministério Público e ao próprio Tribunal de Contas. Neste último, a criação de um quadro técnico de carreira e independente aumentou o constrangimento às decisões políticas e lenientes do plenário de ministros. Hoje o sentimento de corrupção é maior, porque há mais transparência e liberdade de informação.
Em uma breve análise comparativa, de que forma os presidentes pós-redemocratização — Collor, Itamar, Fernando Henrique, Lula, Dilma e Temer — optaram por lidar com as limitações impostas pelo presidencialismo de coalizão?
ABRANCHES: As experiências desses presidentes nos permitem isolar dois perfis políticos de presidências de coalizão. O primeiro perfil, o mais bem sucedido, inclui Itamar, Fernando Henrique, Lula e Temer, pré-escândalo do JBS. Presidentes que sabem negociar, têm traquejo político e se mostraram capazes de manejar suas coalizões e aprovar as prioridades de suas agendas. Itamar, Fernando Henrique e Lula tinham legitimidade e autoridade. Temer nunca teve legitimidade, embora, no começo, tenha tido autoridade política. Foi desacreditado pela descoberta de suas relações promíscuas com a JBS e, em seguida, com as revelações de sua histórica e promíscua relação com interesses de empresas que operam no porto de Santos. O segundo perfil inclui Collor e Dilma. Nenhum dos dois soube lidar com o Congresso, nem manejar adequadamente a coalizão parlamentar. Collor sequer chegou a ter uma coalizão majoritária. A coalizão de Dilma era majoritária, porém muito grande e heterogênea. Collor tinha experiência política, Dilma não. Ambos eram muito conflituosos. Os dois sofreram impeachment. Itamar também era conflituoso, turrão, mas acabava ouvindo as vozes sensatas dos que o cercavam. O balanço é positivo, tivemos mais governos bem sucedidos politicamente do que fracassados.
Você dedica um capítulo à judicialização da política. Como avalia a atuação do Judiciário na política brasileira nos últimos anos?
ABRANCHES: A judicialização é um substituto funcional muito mais democrático do que o veto militar típico da Segunda República, quando há impasses decorrentes de conflitos políticos agudos, que geram instabilidade institucional. No meu artigo original sobre o presidencialismo de coalizão eu aventei a hipótese de que o Judiciário acabaria por exercer uma espécie de poder moderador, porém não tão absolutista como ele era no império. Acabou sendo uma prática diferente e mais extensa do que imaginei. Nem por isso menos necessária e essencial. A judicialização da política dá resiliência institucional ao modelo. É inevitável, por outro lado, a politização do Judiciário, partir desse envolvimento mais frequente nas decisões políticas.
Há excessos do Judiciário? Há erros. Há excessos e erros. Mas as virtudes do controle jurisdicional da ordem constitucional tem sido essencial à persistência do Estado democrático de direito. O maior problema tem sido essa deformação do modelo republicano que é o privilégio de foro, porque aí, o Supremo Tribunal Federal, que é o recurso de última instância, acaba examinando crimes comuns, como os de corrupção, desvirtuando seu papel institucional e tornando-o mais vulnerável às pressões e ao ataque das forças políticas.
Quais seriam os pontos fundamentais de uma reforma do nosso sistema político, na sua opinião?
ABRANCHES: Na minha visão, a principal mudança de regra eleitoral necessária já foi aprovada e entrará em vigor nas próximas eleições gerais. É o fim das coligações nas eleições proporcionais. Era uma excrescência e uma das regras que incentivava o toma-lá-dá-cá. Eu considero que, para o melhor funcionamento do presidencialismo de coalizão, o ideal seria separar as eleições de presidentes e governadores, eventualmente prefeitos, das eleições parlamentares. Essa separação poderia gerar coalizões mais homogêneas e compactas. A reforma de profundidade que considero essencial é o redesenho político, institucional, tributário e fiscal do regime federativo, dando mais atribuições e recursos aos estados e municípios, reduzindo as prerrogativas da União e deixando para o Governo Federal apenas as questões estratégicas, gerais, nos campos econômico, social e político. O fim de todos os privilégios, que são estranhos ao regime republicano, a começar pela prerrogativa de foro especial, é outra reforma importante para o modelo político brasileiro.