Homem morre após fazer tatuagem; laudo sugere intoxicação por anestésico
16/02/2023 10h20
A Polícia Civil do Paraná (PC-PR) investiga a morte do vendedor David Luiz Porto Santos, de Curitiba. Ele morreu logo após fazer uma tatuagem no braço. O tatuador José Manoel Vieira de Almeida é investigado.
Em depoimento à polícia, a esposa da vítima, Monike Caroline de Freitas, disse que o marido teve uma reação quase que imediata à lidocaína – substância anestésica usada pelo tatuador.
“Na hora que tava limpando o excesso [do medicamento], meu marido perguntou o que ele tinha passado e ele [tatuador] falou que era um anestésico. Depois, ele começou a passar mal. O tatuador falou: ‘Dá sal pra ele’. O outro rapaz que tava junto deu o sal e coloquei debaixo da língua do meu esposo. Meu marido só fazia assim [balançava a cabeça] que não tava bem. Botei a mão no peito dele e falei pro tatuador que ele tava com o peito acelerado.”
A defesa do tatuador disse que aguarda acesso a todas as informações dos autos para se manifestar.
Laudo Instituto Médico Legal (IML) não precisou quantas vezes ou em que quantidade o medicamento foi aplicado em David, mas indicou que os exames são “sugestivos para intoxicação exógena por lidocaína”.
O caso aconteceu em 27 de agosto de 2021 e é investigado desde então. De acordo com o delegado Wallace de Oliveira Brito, do 6º Distrito da Polícia Civil do Paraná (PC-PR), o tatuador foi intimado a prestar um segundo depoimento sobre o caso nesta quinta-feira (16).
No primeiro depoimento à polícia, o tatuador afirmou ter aplicado a substância após a solicitação de David, o que a esposa nega ter acontecido.
Um dos documentos que respalda a investigação da PC-PR é o laudo pericial do Instituto Médico-Legal (IML), que encontrou lidocaína no corpo da vítima.
A substância aplicada no corpo do tatuador foi de uso tópico, em forma de spray, com dose de 20%.
Segundo resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), a aplicação de anestesias pode ser feita apenas por algumas categorias de profissionais. No caso de anestésicos, o órgão diz apenas que o uso dos medicamentos não pode invadir a competência médica.
“É um caso inédito. Pelas circunstâncias, ele [tatuador] violou um dever de cuidado. Quando um profissional faz isso, ele assume risco”, afirmou o delegado.
Primeira tatuagem da vida
De acordo com a investigação da polícia, David morreu aos 33 anos, quando fazia a primeira tatuagem.
O tatuador José Manoel disse em depoimento que a arte era grande, composta por vários desenhos, praticamente “fechando” o braço esquerdo do cliente.
A esposa de David contou à polícia que, antes de morrer, o marido teve várias reações, como pressão baixa, palidez, batimento cardíaco acelerado, fala embaralhada, veias dilatadas, perda de sentido e convulsão. Os sintomas, segundo ela, apareceram ainda no estúdio, durante a tatuagem.
O laudo do IML indica que a intoxicação por anestésico local depende de vários fatores, entre eles a velocidade com que se estabelece a aplicação do medicamento.
“A lidocaína pode ser absolvida logo após a aplicação e seu grau de absorção e porcentagem da dose absorvida dependem da dose total e da concentração administrada, do local de aplicação e do tempo de exposição ao anestésico. A toxidade sistêmica está associada a doses elevadas da medicação”, diz laudo do IML.
À polícia, José Manoel disse que aplicou o medicamento em David uma única vez, e que na rotina de trabalho utilizava a substância apenas em casos em que percebia que o cliente estava com muita dor, o que este seria o caso do cliente.
Segundo a esposa de David, o marido não reclamou de dor, nem aparentava estar incomodado com a sessão de tatuagem.
De acordo com a investigação, a sessão de tatuagem de David começou durante a manhã e foi até a noite, por volta de 21h.
Em depoimento ao delegado Wallace, a esposa de David afirmou que o anestésico foi aplicado na região do ombro. Lembrou, também, que as reações do marido começaram pouco após o excesso do medicamento ser retirado pelo tatuador.
Para a polícia, em um primeiro depoimento, o tatuador contou que prestou auxílio desde o momento em que David começou a passar mal, orientando o homem e acionando o Samu.
Sem resposta rápida do socorro, o profissional disse ter levado o homem a um hospital particular de Curitiba. Afirmou, também, que ficou no local esperando notícias do cliente junto à família.
O tatuador disse acreditar que o caso foi uma fatalidade, e que depois da morte parou de usar lidocaína e qualquer tipo de anestésico em sessões de tatuagem.
O laudo da morte
O laudo do IML só localizou lidocaína no corpo de David – nenhuma outra substância – e indica que a causa da morte é indeterminada. Exames internos e externos da necropsia, entretanto, detectaram mudanças corporais em David.
Em um dos exames, o IML aponta, por exemplo, congestão pulmonar e coração aumentado, mas não detalha se o motivo foi a lidocaína.
O laudo do IML também contestou a porcentagem de lidocaína presente no medicamento aplicado em David.
O laudo diz que “as medicações a base de lidocaína tópica são usualmente vendidas em creme a 4% e spray a 10%”, diferentemente da versão aplicada no cliente, de 20%. O relatório também cita que a vítima tinha bom desenvolvimento muscular e bom estado de nutrição.
À polícia, o tatuador afirmou que o medicamento foi manipulado e que apresentou receita para solicitá-lo
em uma farmácia. Disse, também, que o produto estava dentro do prazo de validade.
O tatuador também afirmou que antes de fazer a tatuagem, David assinou um termo consentimento, no qual não declarou alergias nem nenhum problema de saúde.
Segundo investigação, spray de lidocaína estava no prazo de validade quando foi utilizado — Foto: Reprodução
Andamento das investigações
O delegado Wallace Brito explicou que entre os crimes pelos quais o tatuador pode responder, caso seja indiciado, está o de homicídio culposo – quando não há intenção de matar.
Apesar de o caso ter começado a ser investigado logo após a morte de David, o inquérito só chegou ao delegado Wallace, no 6º Distrito da Capital, em fevereiro de 2022.
O que diz a lei
Parecer técnico do Conselho Regional de Medicina do Paraná (CRM-PR) explica que a aplicação de anestésicos, quaisquer que sejam, constituem ato médico. Em alguns casos, outras categorias, como dentistas, também podem utilizar as medicações.
O mesmo documento ressalta que a prática de anestesia por leigos “não só é proibida, como também pode causar sequelas”.
“Neste passo, tal procedimento caracteriza-se como exercício ilegal da medicina, devendo, os que assim procedem, ser denunciados à autoridade policial para que sejam tomadas as medidas cabíveis”, detalha o documento.
Para a prática de médicos anestesistas, por exemplo, uma resolução do Conselho Federal de Medicina determina que para qualquer anestesia, exceto em situações de urgência e emergência, deve-se saber com antecedência “as condições clínicas do paciente, cabendo ao médico anestesista decidir sobre a realização ou não do ato anestésico”.
A médica anestesista Ursula Bueno do Prado Guirro, conselheira do CRM-PR, explica que existem cremes anestésicos locais no mercado brasileiro, e que tais medicações podem ser utilizadas sob orientação médica quando se prevê dor superficial na pele.
Ela ressalta, entretanto, que o uso precisa ser em pequena quantidade e em uma área limitada.
“No entanto, o uso de anestésicos em creme sobre a pele apresenta riscos para a saúde como reações na pele e alergia, que podem levar a quadros graves”, explica a médica.
Ursula também explicou que, com este tipo de medicamento, há risco de intoxicação pelo uso excessivo ou, ainda, se utilizado na pele que não está íntegra ou sobre mucosas, o que pode levar a uma absorção maior que a esperada e causar quadros de intoxicação.
Profissão não regulamentada
Atualmente a profissão de tatuadores não é regulamentada, por isso, não há regras claras sobre os direitos e deveres legais dos profissionais.
Na Câmara dos Deputados, um Projeto de Lei de 2006 tentou regulamentar a profissão de tatuador, mas foi arquivado.
Em 2007, outra proposta de criar regras para a prática de tatuagem e piercing também foi apresentada. A última movimentação foi em 2021. O projeto está pronto para avaliação da Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF).
Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie. Leia as perguntas mais frequentes para saber o que é impróprio ou ilegal.
Este site usa cookies para que possamos oferecer a melhor experiência de usuário possível. As informações de cookies são armazenadas em seu navegador e executam funções como reconhecê-lo quando você retorna ao nosso site e ajudar nossa equipe a entender quais seções do site você considera mais interessantes e úteis.
Cookies Estritamente Necessários
O cookie estritamente necessário deve estar ativado o tempo todo para que possamos salvar suas preferências de configuração de cookies.
Se você desativar este cookie, não poderemos salvar suas preferências. Isso significa que toda vez que você visitar este site, precisará habilitar ou desabilitar os cookies novamente.