A notícia sobre a obrigatoriedade do uso de máscara foi compartilhada por um conhecido meu no Facebook. Os comentários que ele recebeu na sequência ajudam a explicar por que, depois de quase cem dias, o coronavírus segue fazendo mais estragos no país do que a artilharia alemã na Copa de 2014. (Não, isso não tem graça).
Em tom de autoridade, um comentarista confrontou o autor da postagem dizendo que está provado desde Isaac Newton que o uso prolongado de máscara de proteção contra o coronavírus produz hipóxia (baixa oxigenação do organismo) e impede a troca de oxigênio e dióxido de carbono do corpo com o ambiente. Essa conversa correu pelos grupos das melhores famílias e já foi desmentida por inúmeras plataformas de checagem.
Outro comentarista levantou uma questão filosófica sobre a decisão judicial. Para ele, a liminar fere o direito individual de escolha, já que, como pessoa física, Bolsonaro pode escolher se sabotar ou não.
O raciocínio faz sentido se o indivíduo morasse sozinho em seu pequeno mundo, como aquele do Pequeno Príncipe. Não parece ser o caso.
Vamos fingir que o presidente, ou qualquer outra autoridade, seja um super herói de dupla personalidade que de dia vai à padaria como pessoa física e à noite veste a máscara e sai para combater o crime como representante dos Estado.
Para muita gente, como o comentarista do post alheio, direito individual pode ser interpretado como direito de se autossabotar. É o que fez o personagem de Nicolas Cage no filme “Despedida em Las Vegas” quando comprou todas as bebidas do mundo e se trancou num quarto de hotel, às suas expensas, com o intuito de entrar em coma alcoólico e morrer. Ele não deveria fazer isso, mas pode.
Numa pandemia, não existe sabotagem que não leve em conta um detalhe, talvez, mas só talvez, importante na história toda: o outro.
É este pequeno detalhe que faz de uma doença ainda sem cura uma tragédia universal e transmissível.
O direito de escolher se boicotar, neste caso, é uma irresponsabilidade com a vida alheia, e isso está dando tilt na cabeça de quem aprendeu meia dúzia de frases sobre liberalismo e sai divulgando sem pensar no que diz.
Na dúvida, fica o ensinamento remodelado: seu direito de querer se contaminar e morrer em paz acaba no primeiro espirro em direção a quem preferia, de repente, por alguma razão que o raciocínio de rede social não alcança, continuar vivo.
Se os sintomas persistirem, procure um médico, de preferência da Fiocruz, que em sua página é categórica em dizer que o uso de máscaras em larga escala tem como base a proteção coletiva, uma vez que muitas pessoas estão infectadas e ainda não apresentaram sintomas da doença — ou seja, podem estar transmitindo a doença sem saber.
Há quem veja nesses esforços de cuidado e proteção um desserviço à virilidade. O próprio Bolsonaro já afirmou que ficar em casa, a única decisão individual comprovadamente eficaz contra a contaminação, é coisa de covarde, e que é preciso encarar o vírus como homem.
É essa fragilidade masculina, insegura até quando desafia uma doença contagiosa com uma falsa sinalização de coragem, que se manifesta quando se tenta bancar o valentão. O mau exemplo pipoca por aí nas melhores famílias, mas a coisa engrossa, com risco de contaminação exponencial, quando a ignorância parte da maior autoridade da República.
Direito individual é outra coisa.
E ele será realmente um direito adquirido quando deixar de ser confundido com concessão ao egoísmo.